18.12.08

TAJ MAHAL POR DENTRO

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23.9.08

O CORVO - POR FERNANDO PESSOA

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De Edgard Allan Poe
Tradução de Fernando Pessoa

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
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O CORVO - POR MACHADO DE ASSIS

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De Edgard Allan Poe
Tradução: Machado de Assis


Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas tais palavras:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o colchão refletia
A sua última agonia.
Eu ansioso pelo Sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito,
Levantei-me de pronto, e "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo, e desta sorte
Falo: "Imploro de vós — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso
Já cochilava, e tão de manso e manso,
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra
Que me amedronta, que me assombra.
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro co'a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais,
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento, e nada mais."

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
de um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta em um busto de Palas:
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gosto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "Ó tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais."

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que eu lhe fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta a dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais."

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário.
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse,
Nenhuma outra proferiu, nenhuma.
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
"Tantos amigos tão leais!
"Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais."

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais."

Segunda vez nesse momento
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E, mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera,
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais."

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranqüilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível:
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No Éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
"Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!"
E o corvo disse: "Nunca mais."

"Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! (clamei, levantando-me) cessa!
Regressando ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo...
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais."

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!
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14.4.08

CACHORRO VELHO

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"Uma velha senhora foi para um safári na África e levou seu velho vira-lata com ela. Um dia, caçando borboletas, o velho cão, de repente, deu-se conta de que estava perdido.

Vagando a esmo, procurando o caminho de volta, o velho cão percebe que um jovem leopardo o viu e caminha em sua direção, com intenção de conseguir um bom almoço ..

O cachorro velho pensa:

-'Oh, oh! Estou mesmo enrascado ! Olhou à volta e viu ossos espalhados no chão por perto. Em vez de apavorar-se mais ainda, o velho cão ajeita-se junto ao osso mais próximo, e começa a roê-lo, dando as costas ao predador ..

Quando o leopardo estava a ponto de dar o bote, o velho cachorro exclama bem alto: -Cara, este leopardo estava delicioso ! Será que há outros por aí ?

Ouvindo isso, o jovem leopardo, com um arrepio de terror, suspende seu ataque, já quase começado, e se esgueira na direção das árvores.

-Caramba! pensa o leopardo, essa foi por pouco ! O velho vira-lata quase me pega!

Um macaco, numa árvore ali perto, viu toda a cena e logo imaginou como fazer bom uso do que vira: em troca de proteção para si, informaria ao predador que o vira-lata não havia comido leopardo algum..

E assim foi, rápido, em direção ao leopardo. Mas o velho cachorro o vê correndo na direção do predador em grande velocidade, e pensa:

-Aí tem coisa!

O macaco logo alcança o felino, cochicha-lhe o que interessa e faz um acordo com o leopardo.

O jovem leopardo fica furioso por ter sido feito de bobo, e diz: -'Aí, macaco! Suba nas minhas costas para você ver o que acontece com aquele cachorro abusado!'

Agora, o velho cachorro vê um leopardo furioso, vindo em sua direção, com um macaco nas costas, e pensa:

-E agora, o que é que eu posso fazer ?

Mas, em vez de correr ( sabe que suas pernas doídas não o levariam longe...) o cachorro senta, mais uma vez dando costas aos agressores, e fazendo de conta que ainda não os viu, e quando estavam perto o bastante para ouvi-lo, o velho cão diz:

-'Cadê o filha da puta daquele macaco? Tô morrendo de fome! Ele disse que ia trazer outro leopardo para mim e não chega nunca! '

Depois, mais experiente e feliz, o velho cachorro continuou à caçada a borboletas, para alegria da velha senhora!


Moral da história: não mexa com cachorro velho... idade e habilidade se sobrepõem à juventude e intriga.


Sabedoria só vem com idade e experiência. "

Em homenagem a todos aqueles que são jovens há mais tempo.

(Texto recebido por e-mail, sem citação de autor)


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9.4.08

GUSTAVE COURBET




Depois de concluída por Courbet, a tela acima foi mantida oculta durante muito tempo. Hoje, é uma das que atraem mais a atenção do público. A idéia traduz algo como "onde tudo começou..." O título é "Origem do Mundo"

12.2.08

CONFISSÕES NO PARQUE

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Gente anônima transforma as pistas e os gramados do maior espaço verde da capital em um divã divertido
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Marcelo Abreu
Da equipe do Correio
(Matéria do jornal Correio Braziliense de 12.02.2008)
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Se há um lugar verdadeiramente democrático na Brasília reta de Lucio Costa é o Parque da Cidade. Ali, nos seus 10km de extensão, cabem todas as tribos, todos os gostos, todos os devaneios, todos os sonhos, todos os planos, todos os suspiros… Ali, cabem todas as conversas — sem censura, sem cortes, sem meias-palavras, sem edição. E elas, as conversas, vêm soltas, sonoras, desprovidas de culpa, medo ou vergonha. Simplesmente vêm.
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Ouvi-las, sem fazer muito esforço para isso — tampouco o ato de ouvir revela indiscrição — é uma viagem. Uma saborosa viagem. No Parque da Cidade, em cada conversa alheia — falada em alto e bom som (quem fala, fala tão alto que nem se preocupa se alguém vai ou não ouvir) — talvez esteja um pouco de nós mesmos. Mesmo que, à primeira impressão, nem percebamos isso. .
Primeiro domingo de sol depois do carnaval. O parque está lotado. São 10h. Uma multidão saiu de casa para andar pelo espaço mais plural de Brasília. Há quem ande em grupo — duas, três ou mais pessoas — e fale sem parar. Há quem ande sozinho e nem assim deixa de falar. Fala baixinho, como se contasse segredo, guardado a sete chaves. Há quem cante, repetindo a música que ouve no aparelhinho grudado no ouvido. Há quem medite. Há quem corra. E nem assim deixa de falar. Há quem se espante com que o ouve. Há quem finja não ouvir. Há quem leia, debaixo de uma árvore. Às vezes, troca confidências com os personagens do livro. E fala alto.
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Uma moça bonita, em torno dos 20 anos, cabelos negros presos num boné, lê alguma coisa interessante sob a sombra de um pé de manga. É um livro de capa dura. Em algum momento, ela o deixa repousar sobre o colo e se perde nos próprios pensamentos. Depois, como se só ela ali existisse, deixa escapar alguma coisa. Um suspiro bom. Aquele momento, mesmo visto de longe, parece ser só dela. O parque é dela.
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Assim como é de um monte de gente anônima. São donos de um mesmo pedaço. E, sendo tão donos, sentem-se como se estivessem na sala de casa: em companhia do melhor amigo, do amante, do marido, da mulher, do companheiro, da companheira…Seja lá de quem for. Nesse aconchego todo, surge um casal — uma moça morena e um rapaz de pele clara. Ela fala qualquer coisa, usando de comparação: “Nunca tive dinheiro e nem assim meus filhos andavam desarrumados”. E continua: “Acho desleixo de mãe esse tipo de coisa…” O companheiro de andança dominical concorda, balançando com a cabeça.
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E a moça e o rapaz somem. A conversa ainda vai render… Mas eis que logo surge uma dupla animada. Animadíssima. Aqui entre nós, a dupla é mais que animada. É descoladíssima. São duas mulheres, na faixa dos 30 anos. Uma delas, de cabelos castanhos-claros, roupa de ginástica e óculos escuros gigantescos, desses que se vêem em revistas de celebridades, conversa com a outra — de cabelos tingidos de loiros, short de lycra, miniblusa e óculos de sol igualmente gigantes.
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A de cabelos castanhos-claros não tarda a sapecar: “Aí eu disse pra ela: ‘Aquela tua amiga é pistoleira. E repeti: Pistoleira mesmo, caçadora de homem de bar em bar’. Ela arregalou os olhos. E eu não perdi tempo. Já que tava a fim dizer, disse mesmo. Ainda avisei: ‘Você vai ver. No dia que ela tomar seu namorado, te der uma rasteira, aí você vai me dar razão. Ela já fez isso com duas amigas inseparáveis dela. E você ainda acha que aquilo é amiga de alguém…’”. A moça de cabelos loiros também não deixou por menos: “Quer saber? Eu acho ela ingênua demais. Só vai perceber que aquilo não presta quando pegar o namorado com a pistoleira…”
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Cena gay

Mas eis que as duas moças descoladas também somem. É preciso andar. Há muito para falar. Logo atrás, dois rapazes, em torno dos 25 anos, ambos com tatuagem nos braços e nas costas, caminham sem pressa. O mais malhado e de cabeça raspada, irritado, dispara: “A cena gay em Brasília tá muito ruim. Tu tem que ver a de São Paulo. A noite é de pirar, maluco! Muita loucura! Muita azaração! E aqui? Nem perco mais tempo saindo”. O parceiro de noitada ajeita os óculos estilosos e, com cara de ‘não-tô-nem-aí’, olha para um povo que corre ao lado e não deixa barato: “Nessa cidade só tem gente feia. Eu também tô dando um tempo. Sair aqui é queimar o filme”. De repente, os dois decidem correr. O papo sobre a cena gay de Brasília fica para outra hora. O momento é do corpo.
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Um casal — pelo menos estava de mãos dadas — anda perto da ponte. A moça diz ao companheiro: “Se eu não puder falar pra ela o que penso, então acho que isso não é amizade. Se tiver que medir o que digo, não vale a pena insistir ser amiga de uma pessoa que não aceita ouvir verdade e insiste em se fazer de vítima sempre …”. O moço que andava de mãos dadas com a moça que discursava sobre o sentido da amizade apenas consentiu. O casal desceu a ponte e andou. A fila sempre anda. Um homem, mais de 40 anos, atarracado e barrigudo, corria quase morrendo. Além do esforço dilacerante (a impressão é de que podia ter um piripaque a qualquer momento), ainda falava alto ao celular. Uma bravura! Confiante, perguntava para alguém do outro lado da linha, certamente o parceiro das mil e uma noites impublicáveis: “E ai, tu saiu ontem? Aquelas meninas gostosinhas tavam lá? Não me conta! Rolou?” De repente, o homem atarracado desapareceu, pensando nas ‘meninas gostosinhas’ que ele não viu. E não viu. Coitado. Melhor continuar correndo…

O parque continua lotado. Passa da 11h. Um trio de mulheres se encontra perto do relógio do sol. Depois dos tradicionais beijinhos, uma das mulheres, que caminhava sozinha, diz para a amiga: “Nossa, você viu como eu tô enorme de gorda? Nem sei mais o que fazer. Passei esse carnaval todo de boca fechada, sem extravagância, passando fome e nem assim consegui emagrecer”. A amiga a consola: “Você não tá gorda, não. É impressão sua, menina!”. Conversam amenidades. Despedem-se com beijinhos e mais beijinhos. O trio se separa. A amiga que a consolou, longe da outra que se queixava do excesso de peso e sumiu na multidão, disse para a moça que a acompanhava no passeio: “Mas que ela tá gorda, tá. Não quis foi dizer, mas tá. Mas isso é porque come demais…” Meu Deus!
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Pelo telefone

Há também quem, no parque, termine um relacionamento amoroso — ou o que valha. E pelo celular. Um homem, perto dos 50 anos, andava vagarosamente perto dos eucaliptos, onde o churrasco rola solto. De forma paciente, ele dizia ao ser que o ouvia do outro lado da linha: “Tô te pedindo sinceramente desculpa. É o máximo que posso fazer no momento”. A criatura do outro lado da linha não deve ter aceitado as desculpas do homem que tentava ser elegante. Mas aí ele perde a cabeça: “Então, se você acha que desculpa é pouco, não temos mais nada pra falar. Viva sua vida, que vou viver a minha. Chega! É a melhor coisa que a gente pode fazer agora. E só uma coisa: depois não diz que se arrependeu”. E desligou, raivosamente, o telefone. Andou desconsolado e resolveu ir embora. Seguiu para o estacionamento, entrou no carro e sumiu.
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Nem a faxineira escapou, minha gente! A raiva de uma mulher em cima da cidadã consumiu algumas das voltas do parque. Em companhia de um homem — provavelmente um amigo — ela desanda a falar. O sotaque é mineiro, com tiradas goianas: “Não dei conta, não. Ela destruiu minha casa. Quebrou louça, peças raras de decoração. Mudava móvel de lugar sem eu mandar. Tinha dia que chegava em casa e não reconhecia. Parecia que tinha havido um terremoto ali dentro. E olha que a Sandra, exigente do jeito que é, ainda me disse que foi a melhor faxineira que já teve na vida. Eu, tola, acreditei e contratei aquela louca…” O homem parecia pouco animado com o papo. Resolveu mudar de assunto. Puxou assunto sobre risco de apagão elétrico e o governo Lula. Pelo amor de Deus! Melhor seria continuar a divertida conversa sobre a ‘doida’ da faxineira indicada pela amiga prestativa.
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Nesse momento, uma moça conversa com outra. Pelo visto, trabalha em hospital. E não poupa o chefe. “Eu não sei como um hospital que se diz tão bom, que quer ser referência em Brasília, pode ter um chefe de unidade tão incompetente como aquela coisa. Ele é despreparado, insensível e carreirista”. A acompanhante do passeio também não perdoou: “É por isso que não agüentei muito tempo. Não tenho o menor talento para lidar com neurótico. Acho que você devia fazer o mesmo. O que não vai faltar é emprego, você é competente…” E a conversa rolou solta. A orelha do chefinho certamente esquentou…
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E assim é um domingo no Parque da Cidade. Um show. Uma diversão. Terapia que vira catarse. Ver e ouvir as pessoas só ratifica o que já sabemos: somos humanos. Ainda bem. Desses que falam alto, brigam, bradam, têm acessos de raiva, apaixonam-se. E, até por isso, tornam-se iguaizinhos. Bem iguaizinhos mesmos. Talvez o que os diferencie, pelo menos no parque, seja a marca do tênis que calçam ou o ipod (chique isso!) que ostentam no braço. Mais nada. Gente é igual em qualquer canto.
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