12.2.08

CONFISSÕES NO PARQUE

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Gente anônima transforma as pistas e os gramados do maior espaço verde da capital em um divã divertido
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Marcelo Abreu
Da equipe do Correio
(Matéria do jornal Correio Braziliense de 12.02.2008)
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Se há um lugar verdadeiramente democrático na Brasília reta de Lucio Costa é o Parque da Cidade. Ali, nos seus 10km de extensão, cabem todas as tribos, todos os gostos, todos os devaneios, todos os sonhos, todos os planos, todos os suspiros… Ali, cabem todas as conversas — sem censura, sem cortes, sem meias-palavras, sem edição. E elas, as conversas, vêm soltas, sonoras, desprovidas de culpa, medo ou vergonha. Simplesmente vêm.
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Ouvi-las, sem fazer muito esforço para isso — tampouco o ato de ouvir revela indiscrição — é uma viagem. Uma saborosa viagem. No Parque da Cidade, em cada conversa alheia — falada em alto e bom som (quem fala, fala tão alto que nem se preocupa se alguém vai ou não ouvir) — talvez esteja um pouco de nós mesmos. Mesmo que, à primeira impressão, nem percebamos isso. .
Primeiro domingo de sol depois do carnaval. O parque está lotado. São 10h. Uma multidão saiu de casa para andar pelo espaço mais plural de Brasília. Há quem ande em grupo — duas, três ou mais pessoas — e fale sem parar. Há quem ande sozinho e nem assim deixa de falar. Fala baixinho, como se contasse segredo, guardado a sete chaves. Há quem cante, repetindo a música que ouve no aparelhinho grudado no ouvido. Há quem medite. Há quem corra. E nem assim deixa de falar. Há quem se espante com que o ouve. Há quem finja não ouvir. Há quem leia, debaixo de uma árvore. Às vezes, troca confidências com os personagens do livro. E fala alto.
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Uma moça bonita, em torno dos 20 anos, cabelos negros presos num boné, lê alguma coisa interessante sob a sombra de um pé de manga. É um livro de capa dura. Em algum momento, ela o deixa repousar sobre o colo e se perde nos próprios pensamentos. Depois, como se só ela ali existisse, deixa escapar alguma coisa. Um suspiro bom. Aquele momento, mesmo visto de longe, parece ser só dela. O parque é dela.
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Assim como é de um monte de gente anônima. São donos de um mesmo pedaço. E, sendo tão donos, sentem-se como se estivessem na sala de casa: em companhia do melhor amigo, do amante, do marido, da mulher, do companheiro, da companheira…Seja lá de quem for. Nesse aconchego todo, surge um casal — uma moça morena e um rapaz de pele clara. Ela fala qualquer coisa, usando de comparação: “Nunca tive dinheiro e nem assim meus filhos andavam desarrumados”. E continua: “Acho desleixo de mãe esse tipo de coisa…” O companheiro de andança dominical concorda, balançando com a cabeça.
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E a moça e o rapaz somem. A conversa ainda vai render… Mas eis que logo surge uma dupla animada. Animadíssima. Aqui entre nós, a dupla é mais que animada. É descoladíssima. São duas mulheres, na faixa dos 30 anos. Uma delas, de cabelos castanhos-claros, roupa de ginástica e óculos escuros gigantescos, desses que se vêem em revistas de celebridades, conversa com a outra — de cabelos tingidos de loiros, short de lycra, miniblusa e óculos de sol igualmente gigantes.
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A de cabelos castanhos-claros não tarda a sapecar: “Aí eu disse pra ela: ‘Aquela tua amiga é pistoleira. E repeti: Pistoleira mesmo, caçadora de homem de bar em bar’. Ela arregalou os olhos. E eu não perdi tempo. Já que tava a fim dizer, disse mesmo. Ainda avisei: ‘Você vai ver. No dia que ela tomar seu namorado, te der uma rasteira, aí você vai me dar razão. Ela já fez isso com duas amigas inseparáveis dela. E você ainda acha que aquilo é amiga de alguém…’”. A moça de cabelos loiros também não deixou por menos: “Quer saber? Eu acho ela ingênua demais. Só vai perceber que aquilo não presta quando pegar o namorado com a pistoleira…”
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Cena gay

Mas eis que as duas moças descoladas também somem. É preciso andar. Há muito para falar. Logo atrás, dois rapazes, em torno dos 25 anos, ambos com tatuagem nos braços e nas costas, caminham sem pressa. O mais malhado e de cabeça raspada, irritado, dispara: “A cena gay em Brasília tá muito ruim. Tu tem que ver a de São Paulo. A noite é de pirar, maluco! Muita loucura! Muita azaração! E aqui? Nem perco mais tempo saindo”. O parceiro de noitada ajeita os óculos estilosos e, com cara de ‘não-tô-nem-aí’, olha para um povo que corre ao lado e não deixa barato: “Nessa cidade só tem gente feia. Eu também tô dando um tempo. Sair aqui é queimar o filme”. De repente, os dois decidem correr. O papo sobre a cena gay de Brasília fica para outra hora. O momento é do corpo.
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Um casal — pelo menos estava de mãos dadas — anda perto da ponte. A moça diz ao companheiro: “Se eu não puder falar pra ela o que penso, então acho que isso não é amizade. Se tiver que medir o que digo, não vale a pena insistir ser amiga de uma pessoa que não aceita ouvir verdade e insiste em se fazer de vítima sempre …”. O moço que andava de mãos dadas com a moça que discursava sobre o sentido da amizade apenas consentiu. O casal desceu a ponte e andou. A fila sempre anda. Um homem, mais de 40 anos, atarracado e barrigudo, corria quase morrendo. Além do esforço dilacerante (a impressão é de que podia ter um piripaque a qualquer momento), ainda falava alto ao celular. Uma bravura! Confiante, perguntava para alguém do outro lado da linha, certamente o parceiro das mil e uma noites impublicáveis: “E ai, tu saiu ontem? Aquelas meninas gostosinhas tavam lá? Não me conta! Rolou?” De repente, o homem atarracado desapareceu, pensando nas ‘meninas gostosinhas’ que ele não viu. E não viu. Coitado. Melhor continuar correndo…

O parque continua lotado. Passa da 11h. Um trio de mulheres se encontra perto do relógio do sol. Depois dos tradicionais beijinhos, uma das mulheres, que caminhava sozinha, diz para a amiga: “Nossa, você viu como eu tô enorme de gorda? Nem sei mais o que fazer. Passei esse carnaval todo de boca fechada, sem extravagância, passando fome e nem assim consegui emagrecer”. A amiga a consola: “Você não tá gorda, não. É impressão sua, menina!”. Conversam amenidades. Despedem-se com beijinhos e mais beijinhos. O trio se separa. A amiga que a consolou, longe da outra que se queixava do excesso de peso e sumiu na multidão, disse para a moça que a acompanhava no passeio: “Mas que ela tá gorda, tá. Não quis foi dizer, mas tá. Mas isso é porque come demais…” Meu Deus!
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Pelo telefone

Há também quem, no parque, termine um relacionamento amoroso — ou o que valha. E pelo celular. Um homem, perto dos 50 anos, andava vagarosamente perto dos eucaliptos, onde o churrasco rola solto. De forma paciente, ele dizia ao ser que o ouvia do outro lado da linha: “Tô te pedindo sinceramente desculpa. É o máximo que posso fazer no momento”. A criatura do outro lado da linha não deve ter aceitado as desculpas do homem que tentava ser elegante. Mas aí ele perde a cabeça: “Então, se você acha que desculpa é pouco, não temos mais nada pra falar. Viva sua vida, que vou viver a minha. Chega! É a melhor coisa que a gente pode fazer agora. E só uma coisa: depois não diz que se arrependeu”. E desligou, raivosamente, o telefone. Andou desconsolado e resolveu ir embora. Seguiu para o estacionamento, entrou no carro e sumiu.
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Nem a faxineira escapou, minha gente! A raiva de uma mulher em cima da cidadã consumiu algumas das voltas do parque. Em companhia de um homem — provavelmente um amigo — ela desanda a falar. O sotaque é mineiro, com tiradas goianas: “Não dei conta, não. Ela destruiu minha casa. Quebrou louça, peças raras de decoração. Mudava móvel de lugar sem eu mandar. Tinha dia que chegava em casa e não reconhecia. Parecia que tinha havido um terremoto ali dentro. E olha que a Sandra, exigente do jeito que é, ainda me disse que foi a melhor faxineira que já teve na vida. Eu, tola, acreditei e contratei aquela louca…” O homem parecia pouco animado com o papo. Resolveu mudar de assunto. Puxou assunto sobre risco de apagão elétrico e o governo Lula. Pelo amor de Deus! Melhor seria continuar a divertida conversa sobre a ‘doida’ da faxineira indicada pela amiga prestativa.
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Nesse momento, uma moça conversa com outra. Pelo visto, trabalha em hospital. E não poupa o chefe. “Eu não sei como um hospital que se diz tão bom, que quer ser referência em Brasília, pode ter um chefe de unidade tão incompetente como aquela coisa. Ele é despreparado, insensível e carreirista”. A acompanhante do passeio também não perdoou: “É por isso que não agüentei muito tempo. Não tenho o menor talento para lidar com neurótico. Acho que você devia fazer o mesmo. O que não vai faltar é emprego, você é competente…” E a conversa rolou solta. A orelha do chefinho certamente esquentou…
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E assim é um domingo no Parque da Cidade. Um show. Uma diversão. Terapia que vira catarse. Ver e ouvir as pessoas só ratifica o que já sabemos: somos humanos. Ainda bem. Desses que falam alto, brigam, bradam, têm acessos de raiva, apaixonam-se. E, até por isso, tornam-se iguaizinhos. Bem iguaizinhos mesmos. Talvez o que os diferencie, pelo menos no parque, seja a marca do tênis que calçam ou o ipod (chique isso!) que ostentam no braço. Mais nada. Gente é igual em qualquer canto.
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