18.3.10

BYE, BYE, SAPOPEMA



Na época narrada no conto, abaixo, havia muito mais com que se preocupar do que fotos e vídeos. Por isso, pouquíssimas são as imagens da época.  De cima para baixo, na primeira foto: eu e a saudosa XLX retratada no conto.  Segunda foto: uma cena recente, que mostra como ainda são alguns dos caminhos por lá.  No vídeo: também de tempos bem recentes, um grupo que se denomina "os botinudos" enfrenta uma boa "diversão",a bordo do 4X4.

BYE, BYE, SAPOPEMA

(Escrito por Ricardo Zani)

Tudo acontece em questão de segundos.

De repente, estou muito próximo da curva e percebo a velocidade excessiva. Um susto! Observo com atenção e reconheço o local. Ângulo fechado! Em seguida, dou-me conta de que não estou na postura correta para dobrar rapidamente à direita. Então, eu me rendo: segura, peão, que aí vem chão!

Cheguei à curva do mesmo jeito que chegara à cidade, ao assumir o trabalho. Desavisado, fora do ritmo, bem próximo de curvas e com posturas impróprias.

Isso fora um ou dois anos antes, quando vim para a base regional, em Ibaiti, transferido de muito longe. Mas, precisamente neste momento, meu problema é o raio da curva, no duplo sentido da palavra. Vou me espatifar no primeiro acidente com a bela XLX branca com detalhes vermelhos, que estou amaciando como manda o manual.

Em que fria me meti aqui? O que estava fazendo ali?

Imprudência não foi. Aliás, cautela nunca faltou. Acho que foi uma brevíssima falha de atenção. Era o caminho de volta, na tarde de sexta-feira, depois de mais uma semana de trabalho no posto de Sapopema. Ser designado para aquele lugar não fora questão de incompetência para melhor localização, mas opção para acumular experiência e, sejamos sinceros, para receber um reforço no salário durante a missão. Logo, não era necessariamente uma questão de idealismo ou encantamento com matas e bichos.

Os que não são dessa época nem desse lugar talvez perguntem: que nobre missão havia para cumprir ali? A política agrícola pretendia dar ênfase a regiões desassistidas e à expansão de fronteiras agrícolas. Nobre ou não, o trabalho consistia em levar o crédito rural a um desses lugares.

Assim, poeira, barro e cenário bizarro eram ingredientes do dia-a-dia, sem falar de caçamba e corda bamba na lida com produtores de pouca destreza e notória brabeza.

Nesse solo argiloso, a pequena equipe se atolou inúmeras vezes nos lamaçais que subjugavam nossos pneus lameiros envoltos em corrente de aço. Não fomos os únicos. Colegas que lá estiveram antes ou depois encontraram iguais ou maiores quebra-cabeças.

Quem não se lixava para essas coisas era Chico. Para ele, tudo estava bem, desde que à noite pudesse relaxar numa roda de cerveja. A gente tentava se preparar para os obstáculos, mas nem sempre dava certo. Além das correntes e dos garrafões de água para tirar o barro das mãos e pés, havia os coturnos do Vanderlei, minhas botinas cascudas e outros aparatos de campanha. Só Valdir se mantinha fiel a roupas e sapatos sociais e finíssimos casacos de lã. Apesar de cuidadoso, às vezes via seus brios de Lord inglês consumidos no embaraço do atoleiro.

É como acontece neste meu retorno para casa. No afã do risco iminente, vai-se o brio ao arrepio da tocada. Dentro do velho casaco de couro, espero ter o tronco protegido de escoriações. Mesmo assim, o estrago se anuncia. Não sei como sairei dessa curva. Vivo, com fraturas ou, se tiver sorte, apenas ralado, com a moto retorcida e tendo de agüentar gozações.

Haverá algo pior que as gozações de colegas que vêm de carro logo atrás. Imagino as piadas que Chico vai fazer nas rodinhas do Bar do Oscar... Chico é o supervisor Francisco, sempre chamado pelo apelido: Palmito. O desgaste do uso o transformou em Parmito, forma que assumiu sem reclamar. Por uns seis meses, Parmito fará piadinhas diárias sobre minha viagem infeliz...

Tudo bem, eu poderia ter evitado isso. Contudo, se não evitei, também não provoquei. Acontece que o momento mais eufórico da semana é quando encerramos o expediente na sexta e rumamos para casa. No meu caso, melhor ainda quando dispenso o fusca da turma para voltar sozinho, de moto.

Hoje, antes de viajar, eu tinha de ajeitar bagagem, abastecer e calibrar pneus. Então, o grupo saiu na frente, arrancando com muito apetite. Os colegas pareciam decididos a chegar antes do malote e bem antes de mim a Ibaiti. De fato, se eu me atrasasse na saída, chegaria muito depois deles.

Em 15 minutos resolvo tudo e me enfio nas divertidas trilhas, no rastro do fusca. Não que queira competir. Não existe esse espírito entre nós. Convivemos em cooperação e amizade, até por imposição das dificuldades. Mas nem por isso vou esconder a agilidade da potranca. Então, na altura de Figueira, eu os alcançarei, mais ou menos no ponto em que começa o asfalto.

Até Figueira são uns 30 km de terra. De lá a Ibaiti, mais uns 30, por asfalto. Quem gosta de aventura, não tem de que reclamar. Na primeira parte do percurso, metade  do trecho nada mais é do que trilha de carroça, perfeita para competições de rally.

Maiores, porém, são as distâncias sócio-culturais. Ibaiti, onde moramos, é um pólo regional bem estruturado, com bom nível de desenvolvimento, no norte pioneiro do Paraná. Sapopema, não. Elo meio desgarrado da malha sócio-econômica, está distante de tudo, até de padrões básicos de qualidade de vida. Nossa “república”, por exemplo, é uma velha e modesta casa de madeira, numa vila próxima ao posto de trabalho. Assim que cheguei, assustei-me com alguns dos traços locais quando me encarregaram de negociar a renovação do aluguel da “república”. Ensaiei uma proposta sensata e fui ao encontro do proprietário. Propus reajuste pelos índices da inflação, na forma da lei. Seu argumento foi objetivo:

- Não!

Cauteloso, indaguei:

- Por que, meu amigo?

Cruzou os braços, empinou a barriga e martelou:

- Porque comigo não tem esse negócio de lei, não senhor...

Se a primeira impressão não é boa, as seguintes não são melhores. A radiografia do lugar mostra extenso rol de carências. Nada de crítica particular nem de opinião pessoal, apenas leituras do diagnóstico sócio-econômico. Se assim não fosse, não se justificaria nosso trabalho.

Ruas pavimentadas: nem um metro sequer. Bibliotecas: o quê? Livrarias e bancas de jornal: esqueça. TV: um canal, com sinal precário. Cinema: nunca teve, mas tem cowboys e cenas de faroeste ao vivo. Botecos: vários na única rua comercial. Restaurantes: não se tem notícia, embora sempre se dê um jeito.

No dia em que Maria adoeceu, descobrimos que estávamos órfãos de forno, fogão e geladeira. Então, ficamos na rua tentando alguma alternativa. Antes que decidíssemos pela caça primitiva, o faro e a fome nos guiaram até uma farta cozinha, no acampamento da Paranapanema, construtora que abria estradas na região naquele início dos anos 80. Na falta da nossa cozinheira, ali nos socorremos com suculentas “quentinhas”, compradas na fila dos operários.

Além das “quentinhas” e de tanta gente acolhedora, havia boas amizades e hábitos divertidos. Beber à noite, em volta da bacia com brasa para espantar o frio. Comer tira-gosto em algum boteco poeirento e admirar a filha do Tide desfilando vigor bucólico no trote de um puro-sangue. Fora isso, rezava a lenda que havia iguarias veladas mais tentadoras do que a leitoa assada pelo Zé Odilo. Quem saberá?

Mas o melhor de tudo era trancar as portas e pegar a estrada. Meu destino se alternava. A cada duas semanas, Ibaiti, sempre na certeza de dois braços abertos e uma noite de ternura. Nas outras semanas, pegava o carro em Ibaiti e rodava mais 300 km, até Lins, interior de São Paulo. Muito mais longe, porém com dupla recompensa, porque dois corações inocentes esperavam cheios de expectativa e carinho. Lembro-me que algumas vezes, por força de emergências, tive de fazer essas viagens à noite, sem escolta alguma. Isso hoje me pareceria insano. Não sei se é questão de maturidade pessoal ou da criminalidade pública, mas já não faria tais imersões noturnas.

Entretanto, da pré-maturidade é o galope de aço que transforma léguas em pó e me põe no peito o vento dos vales depurado em aromas da flora nativa.

Percebo, adiante, a turbulência que sobe do chão e reconheço sua origem. Sem forçar o ritmo, estou alcançando os companheiros ainda no trecho de terra. Ali vai o fusca: sacolejando, roncando, fervendo poeira com o bafo do motor e confinando os passageiros numa sufocante sauna a pó. Suados, cansados e... ultrapassados!

É claro que nada há de excepcional em uma ultrapassagem. Só que ali era diferente, porque incomum expor-se de moto naquelas estradas. Então, mal se acreditava que a moto pudesse se dar bem, muito menos em mãos de “motoqueiro” do asfalto, que se enrola logo na saída.

A XLX, entretanto, lançada havia pouco tempo, foge aos padrões da época. Ao ultrapassá-los, faço discreta saudação, com breve toque na buzina. Porém, não resisto à tentação de uma espiada no interior do fusca. Ah... Exibem expressões de indiferença e desprezo. Parecem dizer: “Vai, aloprado. Suma com essa geringonça. Nós só queremos curtir a viagem...”

Passar por eles é um ato que dura menos de cinco segundos. Mas acabo de ver que esses poucos segundos serão cruciais logo ali, porque, ao olhar para frente, deparo-me com a diabólica curva, que espreita com ar de desafio, como se tramasse contra mim.

Estou mais rápido do que deveria, em velocidade de ultrapassagem, incompatível com a virada de 90º. Se houvesse área livre, passaria direto e retornaria depois de frear com segurança. Mas há um barranco de quase dois metros de altura de frente para mim. Não dá para desprezar a curva e passar direto.

Algo parecido com o curso da vida. Não dava para pular o capítulo de Sapopema e adiantar algumas etapas, mesmo porque outro paredão se apresentaria pela frente. Por paradoxal coincidência, ao final da missão eu sairia dali içado para longe... Não poderia imaginar que logo teria de me apresentar a staffs de Brasília, para estágio probatório em uma função especializada. Ou seja, emergiria de "Sapô" para complexas tarefas na capital.

Contudo, entre Sapopema e Brasília existia uma curva. E aqui estou, entregue aos limites dos meus reflexos. Desacelero e concentro toda a atenção nos freios. A coisa mais importante nesta situação é saber frear, o que não significa frear com força máxima (a menos que se conte com sistema ABS). Se fizer isso, as rodas travam, a frente escapa e perco o controle de tudo...

Em seguida, passo a depender da coordenação motora: nem muita, nem pouca força. Dosagem adequada para cada freio e a melhor combinação entre ambos naquele tipo de terreno. Não travar a dianteira, nem travar a outra roda além do necessário. Só o suficiente para provocar uma leve saída de traseira e, com isso, aprumar a frente na direção da curva. Enfim, os procedimentos a gente conhece. Difícil é pôr em prática no momento de pânico. Isso requer treino...

Pronto! Consegui moderar a velocidade. Pelo menos sei que amanhã não haverá uma cruz cravada nesta margem da estrada. Mas ainda não consigo me colocar no ângulo adequado. Freei tarde e passei do ponto em que deveria iniciar um traçado razoável. Agora, meu traçado é um fiasco e não consigo inclinar a moto tanto quanto necessito, porque, sendo uma curva para a direita, no mesmo lado precisaria ter o pé próximo ao chão. Acontece que ele ainda está ocupado no pedal de freio. Sem poder inclinar muito, o barranco esquerdo vem chegando, pronto para me engolir. Aqui não tenho opções. É tudo ou nada. Ou inclino de qualquer jeito ou vou de cara contra o barranco. Valha-me Deus!

Tudo pula, bate, sacode, escorrega. Ufa! Não atingi o barranco, mas saí do leito da estrada. Estou na valeta lateral, por onde correm as águas das chuvas. Acidentada e profunda em alguns trechos. A moto continua em pé, andando. Literalmente, aos trancos e barrancos, como cabrito assustado. Tudo bem, isso não é problema... Agora, é rezar para que a valeta não se torne profunda mais adiante. Preciso encontrar um jeito de tirar a moto daqui sem perder o embalo. Tento recuperar a calma e esperar o momento para voltar ao leito da estrada. Tenho sorte. Depois de alguns metros, a valeta se torna mais rasa.

Enfim, acabo de vencer a curva e o sufoco. Pela primeira vez, compreendo aquela história segundo a qual, em momentos extremos, um filme se passa em nossos pensamentos...

Não diria que houve milagre, mas santo havia. Devo ter escapado por duas razões. A primeira: anjos dedicados cumpriam um plantão atento. A segunda: a máquina fora projetada para situações-limite. Eu, não. O que me faltou de concentração e habilidade, a máquina repôs com seus recursos. Suspensão perfeita para terrenos ruins, bons pneus on/off, chassi esguio, conjunto equilibrado, freios ajustados, tudo projetado para situações off road. Em resumo, aquilo que para mim era aflição, para ela era só diversão.

Mais uma vez, confiro o retrovisor. Só agora o fusca aponta lentamente na curva. Que alívio! Não viram o apuro que passei.

Durante muito tempo, achei que esse era o último episódio de uma história para ser esquecida. Hoje, penso que é o primeiro de uma jornada para ser contada. Principalmente a quem acreditou que, naquele dia, o "motoqueiro" estava inspirado para manobras difíceis.